quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Samuel C. Costa

Todos aqueles que sobraram
I

‘’Bata nyonso na mbotama bazali na limeiya pe makok’’.
Aristides Maia
- Monstros!
A afirmação do jovem advogado Missael Da Maia trouxe Aristo para a realidade em que vivia. Ambos estavam estupefatos diante da TV, são cenas de aviões que se lançavam contra duas torres, que depois ardiam e explodiam em chamas.  Aristo volta seu olhar para o filho ao seu lado no sofá, bem queria dizer para o filho: - Eu sei meu filho, sei que tens medo...mas estou aqui ao teu lado..., mas não disse nada, na verdade preferiu não dizer, parecia que a melhor forma de se comunicar com o filho, era através do silêncio.E Aristo sentia uma angustia enorme,toda a vez que encarava Missael de frente. Pois não via no filho, toda a urgência e toda a emergência, tão comum a todas as juventudes, de todos os tempos, em todos os lugares. O olhar que ele mesmo tinha quando tinha a idade de Missael. Queria ver outra coisa, mas não via nada, não enxergava nada em seu filho.
            -Filho! Isso é um ato chocante não é? Te parece um ato criminoso para ti, não parece?-Para Aristo Da Maia era tão somente um ato de guerra, tão brutal com um ato de guerra poderia ser em seu contexto mais amplo e profundo. A muito vivenciara atos tão brutais como aquele mostrado na TV, em menores proporções é claro, mas com toda a bestialidade que uma guerra poderia gerar. O velho soldado bem queria dizer ao filho, que passara parte da juventude e da vida adulta ouvindo certos rumores. Na verdade eram promessas, hora veladas, hora ditas abertamente em conclaves, de um ataque frontal ao centro do capitalismo imperialista ocidental, devolver todas as agressões perpetradas por séculos de escravidão, exílios, saques, estupros e massacres. Em meio a devaneios e divagações um nome, a muito adormecido em sua mente, ressurge com toda a força: Natália. A imagem dela vinha lhe assombra depois de um longo tempo tentando-a esquecer de vez.  Era como ela que Aristo um dia queria se casar e ter filhos. Naqueles anos de guerra subterrânea, tempos da chamada ‘’Guerra fria’’. Que o apanhou ainda criança na velha África, quando por diversão cantava, como criança marota que era, hinos da guerrilha perto de soldados portugueses que patrulhavam as ruas de seu país. Cantava o hino próximo aos soldados armados de fuzil para depois sair correndo. Aristo também se recorda de seus muitos exílios forçados em diferentes países. Nos anos em que viveu na Europa e dos amigos e inimigos que fez nesses conturbados anos de luta armada. Agora senta confortavelmente em sua poltrona, revivendo em sua mente, um tempo que apesar de distante, vem atormente-lo de forma tão brutal como as imagens que se passa na TV.
            - Pai? ‘’Tas’’ inda pra onde?
Aristo hesita em olhar para trás, enquanto caminha para a varanda, temia encarar o filho naquele momento. Era uma hora muito difícil para ele, por muito tempo ficou imaginando como seria aquele ataque, aquela tal afronta ao centro do mundo capitalista. Não lhe passava na cabeça que seria um ato de terrorismo puro e simples, não poderia ser, não aos seus olhos. Pensara em algo mais profundo, mais articulado. Agora, um misto de desespero e, uma sensação de vitória tomava conta de si ao mesmo tempo. Como soldado que um dia fora, não poderia tomar o sentimento de vingança, tinha que ser algo mais que aquilo. Lutara internamente para não sentir essas sensações, mas depois do que vivenciara, não poderia sentir outra coisa, já não era mais um soldado em combate ou militante em ação, era um ser vingado. Afinal, membros de sua própria família tombaram no meio do caminho por causa daquela gente. Para que vivessem bem e confortavelmente longe de todo o horror que eles proporcionaram a outros. Hoje aquele povo arrogante, que vivia confortavelmente, poderia sentir o que muitos outros povos indefesos, ao redor do mundo, um dia sentiram e ainda sentem, ver a própria carne arder em chamas ao vivo na T.V, um mundo de horror que eles mesmo contruiram, só que para os outros.
            - Como a tua mãe me faz falta numa hora desta filho...Aristide não percebe, mas fala em dialeto Kibundo. Missael não entendeu nada, e preferiu não fazer pergunta alguma. Mas conhecia bem aquele tom entretecido do pai, e resolveu deixar o velho sozinho consigo mesmo. Era o melhor a se fazer por hora. 


Todos aqueles que sobraram
ll
‘’Oh Sereia dos e dos lagos...
Doce serpente...a banhar-se a mirar-se nas águas.
Vem me seduzir! Embair-me!Oh Quianda sagrada!
 Quero naufragar e morrer em teus braços!
No Pelágio mais profundo quero sumir.
Quero sumir e morrer em teus braços..
.Ouvir teu canto mais sagrado.
Viver e morrer em teus braços...’’  

Os olhos verdes do pai se voltam para confrontar os olhos castanhos e puxados do filho, a tez branca de Aristo contrastava com a pele amendoada de Missael.  
            - Pai ‘’ tas’’ indo pra praia?
Aristo só da uma risada discreta, já estava cansado de falar para o filho que não lhe devia explicações do seus atos. Pelo menos nisso o Missael lhe desobedecia, Aristo se convence, enfim, que o filho não era um caso perdido afinal de contas, havia ali uma centelha de rebeldia pelo menos.
            - Não me espera para o almoço! Era ríspido e amargo o tom de voz do velho soldado para com o filho.
Ao descer as escadas da casa um sentimento lhe invade a alma. Era como um chamado, tinha que ir à praia de qualquer jeito, com se alguém ali o espera-se. Desde criança na África escutava essa estória sobre a Quianda e seu canto sagrado, metade mulher e metade peixe. Cantava, seduzia e matava, era essa a estória que ouvia de pescadores e marinheiros de Benguela, Bengo e Luanda. Também ouvia a mesma estória dos ribeirinhos do rio Cuango e do rio kwanga. Começou como uma brisa fresca, típica da beira mar, mas agora esse zunido que se transformara em um canto finalmente. Aristo, materialista convicto temia estar enlouquecendo, talvez a falta da esposa que acabara de morrer de câncer, fosse à explicação plausível: - Preferia ter partido primeiro, como queria ter tomado o teu lugar Yara!Não queria ficar só neste mundo’’. Como os pés descalços, que mergulhavam na areia quente do meio dia, a brisa que lhe acariciava o rosto, Aristo sente uma sensação de paz a lhe invadir: - Deus, esse cheiro de flores, as mesmas do dia do casamento com a Yara!Só posso estar louco! Aristo não sabia o porquê de estar pensando em Kibundo, fazia tempo que não falava com um patrício se quer. Ao longe uma figura etérea de uma mulher que se aproximara de Aristo o atormentou, ela parecia flutuar enquanto andava. Uma mulher de pele alvíssima e roupas coloridas muito extravagantes, era uma romani com toda certeza, Aristo conheceu alguns na Europa e uns tantos no Brasil. Mas aquela era diferente, e medida que aquela mulher se aproximava, uma certeza tomava conta do velho soldado. Era como nos tempos das incertezas que precediam um conflito, Aristo estava em guerra de novo, não sabia se ficava contente ou triste.
            - Aristo, como vai!A voz soava como um canto.
            - Por que falas a minha língua mulher?Aonde aprendesse o meu dialeto? Aristo fala em português com a romani.
            - Já que queres falar a língua dos estrangeiros esta bem.       
            - O que queres de mim afinal, já não paguei o suficiente nesta vida?Vou ter que sofrer na outra vida também, é isso?
            -Por que falas assim? Se não acreditas em outras vidas além desta, soldado?
            -O que queres afinal de contas?
            - Se lembra das palavras do Carlos para o teu comandante herr Markus Wolf?
            - Inferno o que queres de mim afinal, não lembro, pare de me assombrar com essas coisas mortas!
            - ‘’Um dia, quando perdemos a guerra, quando a gente for derrotado, e não sobrar mais nada, vamos todos dar as mãos camarada "Mischa". Ai todos aqueles que sobrarem, vão se reunir em canto escuro qualquer do planeta, para atacar aqueles imperialistas malditos. Vamos fazê-los pagar um preço alto Mischa, eu juro’’.  Não foram essas as palavras soldado?
            - Também fala alemão romani? Sim, foram essas as palavras, eu estava lá quando Ramírez disse para o comandante essas frases. Foi testemunha disso e muito mais, já ouvi esse discurso em várias línguas à vida toda. Mas, não quero ouvir mais, fiz a minha parte estou onde estou, falando a língua que falo. Vou perguntar de novo, o que queres de mim mulher?
            - Não perdes a esperança meu amor, e logo estaremos juntos de novo!
Proferiu essas palavras em português bem claro e típico de quem nasceu no norte, Aristo não sabia o dizer ou pensar, aquela mulher acabara de falar com a voz de Yara.
            -Tenho que ir soldado já deu meu recado...
A mulher andou em direção ao mar para sumir em meios às ondas, era incrível, mas ela parecia não se molhar ao adentrar no oceano.  

Samuel C. Costa contista em Itajaí. 

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